"Camilo continua a ser vítima de estereótipos injustificados"

Quarta-feira, Março 19, 2025 - 12:47
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Jornal de Notícias

Professor da Universidade Católica de Braga afirma que investigações camilianas são mais produtivas no Brasil do que em Portugal

Professor universitário e ensaísta, Cândido Oliveira Martins lamenta que Camilo Castelo Branco, "grande prosador da língua portuguesa", continue a ser visto por muitos como um escritor provinciano e confinado à narrativa passional.

Cândido Oliveira Martins defende que a abordagem à obra de Camilo Castelo Branco nas escolas portuguesas "deve ser repensada", sugerindo não só que deve ser "transversal a todas as áreas do Ensino Secundário" mas também uma substituição do clássico "Amor de Perdição" pelas "Novelas do Minho", mais susctível de criar empatia com os alunos. 

Em que sentido ler Camilo Castelo Branco hoje continua a ser essencial?

Porque Camilo é um grande prosador da língua portuguesa, um poderoso contador de histórias, um versátil cultor de vários géneros (da narrativa histórica ao romance de atualidade, do teatro à polémica, da narrativa curta à crítica literária). Enfim, Camilo é o construtor de um repositório palpitante de vida do Portugal oitocentista, sem esquecer os nossos atavismos congeniais, analisados pelo prisma de uma sátira contundente e tantas vezes sarcástica.
Neste sentido, no seu conjunto, o vasto conjunto das narrativas camilianas constitui um majestoso painel de um certo Portugal, em mudança considerável a vários níveis (político-social, cultural e literário) – desde o velho Portugal do Antigo Regime absolutista, ao novo Portugal romântico-liberal, sem esquecer o Portugal do Fontismo, até ao Portugal do derradeiro quartel de Oitocentos. E tudo centrado numa geografia literária predominantemente situada a Norte – Porto, Minho e Trás-os-Montes. 

Camilo Castelo Branco foi, para muitos, o grande romântico português, mas também teve incursões por muitas outras correntes, estéticas e géneros. É um escritor de impossível “arrumação”?

Camilo é, exemplarmente, um escritor entre dois mundos – entre um romantismo tardio, assimilado desde a juventude; e novas tendências pós-românticas, de um gosto estético que conhecia e admirava, como o romance de atualidade, à maneira do admirado Balzac, exemplo para a composição das suas inúmeras cenas da comédia humana.
No entanto, em quase meio século de vida literária, preferiu praticar um realismo espontâneo, sem os ditames da escola realista, típicos de uma mundividência positivista. Aliás, Camilo não fica indiferente à moda e modernidade estilística do romance de Eça, mas opta por parodiar o realismo/naturalismo em Eusébio Macário e A Corja num exercício hilariante. Afinal os novos rumos ameaçavam o seu preponderante lugar simbólico no meio literário português. 

Camilo foi a antítese do escritor sem biografia. Era a vida que alimentava os livros ou o inverso?

Camilo sempre explorou, pública e habilmente, múltiplos enlaces entre a existência vivida e a obra escrita. Desde logo, o processo mostra-se rentável em termos de exposição reiterada, de ancoragem na realidade, de garantida popularidade, de cativação do leitor. Em última análise, explora também aqui uma pulsão coloquial com os leitores, cativando-os para una escrita com o selo da verdade. Mas tendo a inteligência da autocrítica e a capacidade de se rir de si próprio.
E alguns biógrafos, mesmo em vida de Camilo, prolongaram essa tendência explorando o filão do "romance do romancista" em tonalidade de panegírico - sobre o romancista que afirmara não ter imaginação, mas antes memória (do vivido, do ouvido, do testemunhado, do lido), em nome da obsessiva "verdade da ficção". Para Camilo, falar de si, de vários modos, era essencial à construção de um nome no mundo das letras do seu tempo.

A Academia continua a dar a atenção devida à obra camiliana? Que facetas da sua gigantesca obra continuam a carecer de um estudo mais aprofundado?

Sendo uma obra literária tão extensa e com uma assinalável riqueza temática, há vários domínios que merecem, ainda hoje, uma atenção crítica renovada, até à luz de novos olhares e de novas preocupações contemporâneas. Além de poder afastar potenciais investigadores pela sua enorme extensão e variedade, a obra camiliana continua a ser vítima de alguns estereótipos apressados e injustificados – Camilo como escritor provinciano, autor confinado à narrativa passional, homem de mundividência conservadora, etc.
Infelizmente, em Portugal, face à grandeza e diversidade da obra camiliana, produz-se pouca investigação e ensaísmo com caráter inovador, lançando mão de adequadas e atualizadas perspetivas teórico-críticas. Contrastivamente, nas últimas décadas, em boas universidades brasileiras (como a USP ou a UNESP), é mais fácil encontrar jovens da graduação, sobretudo da pós-graduação, bem interessados em ler Camilo e em produzir investigação sobre o escritor, tal como colegas docentes e investigadores bem produtivos neste campo.

Camilo nas escolas está praticamente reduzido ao incontornável “Amor de perdição”. Parece-lhe a melhor aproximação possível à obra camiliana?

Professores bem preparados e motivadores podem dinamizar em sala de aula o prazer da leitura de Amor de Perdição. Mas a porta de entrada em Camilo poderia ser outra – por exemplo, uma das breves e notáveis Novelas do Minho; mas também narrativas curtas devidamente selecionadas. 
Claramente, o Camilo da narrativa humorística e satírica ganharia mais leitores jovens do que o escritor da narrativa passional, mais exigente para ser trabalhada em sala de aula. Uma coisa é certa – a presença de Camilo nos programas de Português merece ser repensada, desde logo sendo transversal a todas as áreas do Ensino Secundário.