Entrevista | Cândido Oliveira Martins

Segunda-feira, Setembro 22, 2025 - 19:07
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Aos 60 anos, José Cândido de Oliveira Martins é um nome maior nos estudos literários de língua portuguesa. Extravasou a bucólica freguesia da Ribeira, no concelho de Ponte de Lima, desde tenra Idade. O mundo das letras (ensino e investigaçlio) chamou-o para abraçar o ensino, vários projetos e publicações variadas.
No momento, é professor e investigador da Universidade Católica Portuguesa, na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (Braga) • doutorado em Humanidades (especialidade de Teoria da Literatura). Ao longo dos anos, foi coordenador de cursos de Licenciatura, de Mestrado e de Doutoramento na área da Iteratura portuguesa, além de ter sido diretor da Biblioteca da sua Faculdade por 10 anos. E ainda coordenador da área da Cultura na UCP-Braga. A par destas funções, está ativamente envolvido nas comemorações do bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco, Iniciadas desde março e cujo término aponta para março do próximo ano. Neste âmbito, coordena uma coleção de obras camilianas onde j4 foram publicados oito volumes, de um total de 14 livros.

Que recordações tem do seu tempo de menino?
Nasci em Ponte de Lima e aí fiz os primeiros anos da escola, até ao equivalente 6.° ano, o chamado ciclo preparatório. Depois, vim estudar para Braga aos 11 anos. Vivo desde então nesta cidade, mas mantenho uma relação afetiva com Ponte de Lima, até porque tenho lá a minha família. O lugar onde se nasce é sempre um espaço de eleição, não se explica. Gosto mesmo muito de Ponte de Lima, onde mantenho colaboração cultural assídua. É uma vila muito bonita, com História e tradição cultural. Tem nomes ligados às letras, como António Feijó, poeta bem apreciado. Os limianos têm orgulho na sua longa e rica história.
A vila tem foral (concedido por D. Teresa em 1125) antes da própria independência de Portugal. Com a historiadora Alexandra Esteves (Universidade do Minho), também natural de Ponte de Lima, organizamos agora dois congressos no âmbito do variado programa das comemorações dos 900 anos de Ponte de Lima.

Nesse tempo teve contacto com livros?
Sempre. Tive sorte. Os meus pais eram pessoas humildes e não particularmente pessoas escolarizadas, apenas com a 4.º classe.
Além da motivação da própria escola, tinha na família (e estas coisas fazem toda a diferença) uma prima mais velha (Aurora) que possuía uma pequena biblioteca de onde podia trazer os livros para minha casa. Sou do tempo em que também se recorria às antigas carrinhas da Gulbenkian, que passavam pela aldeia.
Tinha um cartão e lá ia entusiasmado buscar meia dúzia de livros que lia avidamente. Era um verdadeiro fascínio! Começo a gostar e a ter hábitos regulares de leitura e assim alimentar esse vício tão saudável. Lembro de um outro familiar (Salvador) nos ler, à noite e à lareira, páginas da narrativa de Júlio Verne sobre Miguel Strogoff. Era uma leitura muita viva e dramatizada, ainda sem televisão. Ele a contar histórias e pormenores engraçados.
Pelo meio exagerava na dramatização dos soldados de Napoleão quando chegam a Moscovo e morrem de frio. Nunca mais esqueci essa descrição. Era um homem simples, que não tinha grande escolaridade, mas era viajado e apaixonado pela leitura, e isso deixou marcas.


Esse contexto privilegiado encaminhou-o para ser um 'um homem das letras'?
Reconheço que sim. Depois de fazer o ensino secundário, acabei por frequentar a licenciatura na Universidade Católica na área de Letras - em "Humanidades". Sentia-me como 'peixe na água'. A formação ia ao encontro do que gostava: literatura e língua. Sentia-me mesmo bem e não imaginava outra hipótese de formação.
No meio do seio familiar sei que ainda mora em si uma figura muito especial...
Verdade. Tinha um avô muito especial (Francisco Oliveira), homem reto, carinhoso e humanamente muito atento. Perguntava sempre como corriam as coisas em Braga e tinha enorme orguIho em saber do progresso do neto. Mais tarde, quando entrei para a faculdade e fui convidado para dar aulas na Católica, o meu avô passou a ter um orgulho desmedido. Pouco antes de falecer, quase com 100 anos, esteve presente no meu doutoramento, numa memória terna e inesquecível.

Foi o primeiro a estudar na família?
Não, havia outros. Por exemplo, a minha tia Cândida - irmã da minha mãe e minha madrinha - foi minha professora primária. Consequência: tinha trabalhos a dobrar (risos). Tinha os mesmos que dava aos outros alunos e ainda me sobrecarregava com mais alguns. Tenho dois irmãos: uma irmã que tem um belo restaurante em Ponte de Lima; e um irmão inspetor das Finanças. E é sempre um enorme prazer o convívio familiar.

O que encontrou em Braga no campo cultural?
Não havia a riqueza cultural que hoje existe na cidade. A 'agenda cultural', passadas estas décadas, é hoje bem mais rica. Um dos primeiros eventos que lembro, que nem é cultural, foi a realização da AGRO (Feira Agrícola) por volta de 1980, então bem politizada. Na AGRO, distribuía-se propaganda que vinha da URSS, com revistas que transmitiam imagens muito coloridas do desenvolvimento da URSS como um modelo. É um pormenor que ainda tenho presente na memória.


Escolheu a então chamada Faculdade de Filosofia. Alguma razão particular? 
Sim, escolhi porque tinha formação na minha área, os cursos de Filosofia e de Humanidades. Entrei na faculdade com colegas que já conhecia do secundário. Foram cinco anos com muitos bons professores. Muitos deles jesuítas, de espírito aberto e culto, com fortíssima componente humanística. Tal como alguns milhares de alunos desta Faculdade, beneficiei dessa formação sólida. Muitas dessas pessoas são hoje professores de Português nas escolas do Norte do país, a par de outras profissões.

Desse tempo, o que fica?
Ficam sempre recordações, professores, uma quantidade de boas imagens, de convívio, de colegas.
Fica, também, um conjunto de boas evocações do estudo, o prazer de descoberta, novos livros, novos autores. O prazer de passar horas e horas a estudar em casa ou na biblioteca da Faculdade. Essa educação do método, de trabalho, é algo que se adquire em jovem e fica para a vida. Como aprender a gerir o tempo. Não temos os pais connosco. Gerir, também, o dinheiro, a alimentação, cuidar da roupa... Um espaço de valores, uma escola modelar. A nossa relação com os professores era próxima, tratavam-nos pelo nome, falavam connosco fora das aulas. Ainda hoje é assim. Não temos propriamente multidões de pelo nome, falavam connosco fora das aulas. Ainda hoje é assim. Não temos propriamente multidões de alunos e essa é uma vantagem para qualquer aluno que se sente à vontade para falar com os professo-res, tirar dúvidas, dialogar sobre leitura, desenvolver a personalidade. Essa relação próxima e pessoal faz muita diferença em relação a outros modelos de ensino mais massificados.


Nessa altura, tinha ideia de seguir a vida académica?
Não. Quando era aluno, pensava ser professor numa escola básica ou secundária. Mas quando acabei o curso, fiz um estágio numa escola secundária e só depois é que surgiu o convite. Fiquei contente e aceitei. Tinha tanta admiração pelos professores que não me imaginava naquela função. 
contente e aceitei. Mas durante o curso não imaginei sequer tal cenário. Tinha tanta admiração pelos professores que não me imaginava naquela função.
Passou a ser um dos rostos maiores da comemoração do bicentenário de Camilo Castelo Branco.


Quando foi ao encontro deste romancista?
Leio Camilo desde adolescente. Leio-o desde que me lembro. Não consigo identificar o primeiro livro que li dele... terá sido, porventura, a "Maria Moisés", porque tinha um primo padre, professor no Seminário de Braga, que me emprestava livros. Depois li "Amor de Perdição" e "A Queda dum Anjo", que também era obrigatório ler na escola. Seguiram-se tantos e tantos outros títulos camilianos.


Percebeu logo ali que era um autor diferente?
Percebia que era um autor muito ligado a uma geografia do Norte, enquanto um Eça de Queirós ou outros, nos falavam de um Portugal diferente, centrado na capital. Camilo falava, também, da cidade do Porto, mas era um autor muito enraizado e muito conhecedor do Portugal do Norte. Confirmei como leitor mais atento e adulto que tinha um conhecimento invulgar do Portugal onde ele viveu e onde teve múltiplas experiências pessoais, numa biografiamento invulgar do Portugal onde ele viveu e onde teve múltiplas experiências pessoais, numa biografia acidentada. De tal maneira que há um grande escritor espanhol, Miguel de Unamuno - que foi reitor da Universidade de Salamanca - que andou a viajar por Portugal no final do século XIX e início do século XX, escrevendo um livro com as memórias dessas viagens e, a determinada altura, diz que não consegue viajar sem levar livros de Camilo debaixo do braço. E faz um superlativo elogio a Camilo como o grande pintor da realidade social e animica portuguesa. A ideia central é que Camilo retratou Portugal como nenhum outro escritor. Não é recomendável conhecer Portugal sem conhecer Camilo
 

Faça-me o enquadramento do seu contributo no bicentenário de Camilo.
A ideia do bicentenário é particularmente oportuna. Celebrar 200 anos de nascimento de Camilo e isso passar despercebido seria impensável. É um grande e popular escritor português. Existe um programa muito variado, com espetáculos de varia ordem (musicais e teatrais), exposições, documentários, múltiplas iniciativas académicas (congressos e colóquios), programas de televisão (participei em dois na RTP), palestras em escolas e bibliotecas, diversas publicações. O meu contributo é variado - por um lado, organizei em maio um colóquio internacional sobre Camilo na Biblioteca Nacional (Lisboa), além de participar em diversos outros colóquios, dentro e fora de Portugal; por outro, juntamente com a 'Opera Omnia', proporcionar uma nova edição de obras do imortal Camilo.
É um conjunto bem selecionado, cerca de 14 títulos, oito deles já editados. Por curiosidade, alguém conseguiu contar o número de páginas que Camilo terá escrito e terá ultrapassado o número de 60.000 páginas. E uma obra assombrosa! Não é por acaso considerado o grande profissional português das letras. Começou pelo final dos anos 40 até ao suicídio (1890). É meio século de escrita intensa e o facto de ser considerado um grande profissional das letras não é só pela quantidade, mas também pela qualidade.


A somar, convém lembrar que estamos perante um escritor que vivia da escrita...
Muito bem recordado. Camilo viva literalmente da escrita, não tinha outra profissão. Há grandes escritores do século XIX que tinham outro sustento profissional, como Garrett ou o Eça. No caso de Camilo, teve a sorte de ter uma casa e propriedades que ganhou na relação com Ana Plácido e isso deu-lhe alguma estabilidade. Contudo, tinha mulher e três filhos. Na década de 1860, temos anos em que Camilo escreve meia dúzia de livros num ano apenas! Ele não escrevia só esses livros, mas também cartas, crónicas, trabalho de tradução, etc. Era um trabalhador incansável. Ficamos assombrados com esta capacidade anormal de trabalho. 

Os factos que narra ganham ainda maior relevo ama época onde a tecnologia não existia....

Sem dúvida! Pelo meio, recebia visitas em casa, viajava...conseguir escrever a obra que escreveu motivo de assombro, reservado às pessoas toadas pela genialidade. Escrever com essa intensidade e, na fase mais madura, a enfrentar graves problemas de saúde. Sofreu algumas doenças e uma delas tem consequência a nível da visão. Ele nega mesmo a uma situação extrema - parece cena de filme, de ter muita dificuldade de visão para escrever! Contornava isto a escrever de pé, com candelabros e a tinta vermelha, porque tinha maior reflexo para conseguir vislumbrar o que escrevia. É humanamente tocante. Parece a imagem que temos de Beethoven surdo, no final da vida, a compor obras que não consegue ouvir.

Obcecado? 

Sim. Estamos perante um escritor que precisa de escrever, e escreve até ao fim da vida. Até hoje temos tentativas de publicação da obra completa de Camilo, mas rigorosamente - tirando uma célebre edição feita pelo professor Jacinto Prado Coelho e uma outra feita para a Lello por Justino Mendes de Almeida -, ainda hoje não temos a obra integral de Camilo. Se alguém quiser hoje comprar não a encontra numa edição só.


Tem alguma explicação para esta lacuna?

A imensidade da obra camiliana é um desafio editorial. A colaboração de Camilo na imprensa é extremamente abundante e muito variada. Desde o folhetim que era uma forma de publicar uma narrativa ou romance por pequenos capítulos no rodapé no jornal, semanalmente ou quinzenalmente. Isso era fonte de rendimento para o autor.
Era muito bem pago para a época e os escritores precisavam.


Camilo foi amado por Portugal?

Foi (e é) um escritor muito popular. Tem uma obra monumental editada em vida. Em matéria de tragédia romanesca, não tem paralelo na literatura da Península Ibérica. Camilo é o grande escritor dentro deste género, embora a sua obra se estenda a outros géneros. Outro fator que mostra a popularidade de Camilo - ter sido um escritor, à época, objeto de biografias ainda em vida. Em 1861, aparece a primeira, de José Cardoso Vieira de Castro. Tinha apenas 30 e poucos anos. Seguiram-se outras, de Alberto Pimentel, do padre Sena de Freitas. Depois da morte de Camilo, a sua vida atraiu a atenção de autores como Teixeira de Pascoaes, António Cabral, Aquilino Ribeiro, Agustina Bessa-Luís, Mário Cláudio, Alexandre Cabral, entre muitos outros. Isto diz muito sobre a grandeza e sedução do escritor.


Defende que devia ser mais lido nas escolas ou é um assunto bem resolvido?

O que lhe posso responder é que depfis da sua. morte até aos nossos dias, Camilo é dos autores mais editados. Porém, no ensino oficial Ensino Básico e Secundário, a sua presença está aquém da grandeza do escritor. A generalidade dos alunos que frequenta o ensino não é obrigada a ler Camilo. É injusto e o escritor merecia outro destaque. Esperemos que estas comemorações tragam essa reflexão.


...até porque estamos perante uma obra que parece inesgotável....

Ainda bem que fez esse apontamento, Agustina Bessa-Luis, grande camiliana, afirma que uma das grandes virtudes de Camilo é que nunca lemos o Camilo todo, nunca acabamos de ler Camilo, há sempre um Camilo por ler. Como eu, tantos leitores de Camilo podem dedicar anos a ler Camilo e ter essa convicção que falta muito por ler.

Tem noção de quantos livros já leu de Camilo?

Não faço ideia. Li boas dezenas de livros (reli vários deles), mas tenho a nítida convicção que faltam muitos. É uma obra tão extensa, que serão poucas as pessoas que se podem gabar de terem lido o Camilo todo.


A internacionalização dá-se em vida ou pós morte?

Em vida creio que não. Não há, atualmente, uma boa história da literatura europeia que ignore Ca-milo. Todavia, talvez não tenha um número tão elevado de traduções para várias línguas, o que também é essencial. Um dos objetivos das comemorações deste bicentenário poderia ser investir, através do Instituto Camões, num maior número de traduções de Camilo. No Brasil, Camilo sempre gozou de assinalável popularidade, sendo admirado por escritores da grandeza de Machado de Assis.


"O Amor de Perdição". Por que foi tão popular?

É difícil explicar de forma racional. Nós portugueses temos certa inclinação para valorizar essa dimensão passional. Não é por acaso que uma das grandes narrativas míticas do nosso imaginário cultural é a história de Pedro e Inês; ou que a nossa primeira poesia desenvolve o tema do morrer de amor. Ainda por cima, narra-nos uma história complexa, pois Camilo não se limita a narrar a relação de casal de jovens que se amam e veem a sua relação impossibilitada, jovens que se amam e veem a sua relação impossi-bilitada, mas introduz uma terceira personagem, a Mariana, uma rapariga simples, do campo, filha de um ferrador, que se apaixona pelo Simão Botelho, gerando o triângulo amoroso cheio de verdades, de forma muito genuína. Além disso, é uma escrita autobiográfica em que o escritor fala de si, ao falar da história de seu tio Simão Botelho, pois ambos estiveram na mesma prisão.


Uma obra escrita em duas semanas...Uma obra escrita em duas semanas...

Verdade! Camilo referiu que foram os "15 dias mais movimentados da minha vida". Convém dizer que ele esteve na Cadeia da Relação no Porto por causa do processo de adultério, mais de um ano, e mesmo nessas circunstâncias muito especiais, produziu ativamente vários livros. Um dos mais originais
"Memórias de Cárcere", onde conta várias histórias entrelaçadas. O "Zé do Telhado" é uma das mais conhecidas, figura popular e mítica, uma forma de Camilo romantizar o nosso 'Robin dos Bosques' que roubava aos ricos, e que, depois, acaba a sua vida no Brasil. Não há talvez nenhum livro na literatura portuguesa com tantas adaptações (teatro, cinema).
Atingiu a grande popularidade e tocou a sensibilidade nacional. Por exemplo, o realizador Manoel de Oliveira, na versão longa de "O Amor de Perdição". teve tamanho respeito por Camilo que fez questão de passar para o filme todas as falas dialogadas da obra. Como se fosse um texto sagrado, que não se podia amputar.

Enche-lhe as medidas esta coleção que agora sai à rua?

É uma coleção breve e muito digna, da iniciativa da Editora 'Opera Omnia', patrocinada pela CCDRN (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte) e apoiada por vários municípios, terras de geografia camiliana - Câmaras Municipais de Braga, de Vila do Conde, Viseu, Fafe, Cabeceiras de Basto, Ribeira de Pena, Ponte de Lima, Viana do Castelo, etc. Cada livro, pela história narrada, está assim vinculado a um determinado território, onde depois fazemos o lançamento público de cada obra. Pode despertar novos leitores e até promover o turismo cultural e literário. Todos os livros têm uma generosa introdução explicativa, a pensar num público amplo e interessado. Há também a intenção de que o texto seja editado de forma rigorosa e atenta. Editar Camilo é também um serviço cultural, fomentando os hábitos de leitura e o conhecimento de um dos nossos grandes escritores de sempre.


Qual foi o critério da escolha?

Camilo é um autor muito ligado ao Norte. Não houve um critério cronológico, nem foi necessá-rio, predominando o referido critério geográfico.
Posso dizer que é uma edição graficamente muito bonita, de capa dura, ilustrada, um belo objeto gráfico, com títulos bem diversificados: "No Bom Jesus do Monte", "Mistérios de Fafe", "Amor de Perdição", "A Filha do Arcediago", "Maria Moisés",
"Eusébio Macário", "A Corja", "A Doida do Candal".
"Os Brilhantes do Brasileiro", etc. De modo particu-lar, deixe-me referir que No Bom Jesus do Monte' é um livro singular, ancorado num local especial na vida e na obra de Camilo. O romancista visitou o Santuário, pela primeira vez, aos 10 anos. Ao longo da vida, peregrinou diversas vezes ao Bom Jesus, não apenas na busca de uma aproximação ao sa-grado, mas também movido por motivos de convívio social e de contacto com a natureza. Sobre as deslocações e permanência no local deixou Camilo vastas referências na sua obra.


Esta coleção camiliana vai-se esgotar com o financiamento?

Uma excelente noticia e que, algumas na após a saída do primeiro livro da coleção ("No Bom Jesus do Monte'), o editor já não tinha exemplares desse livro para distribuição por livrarias. E continua a receber o interesse e disponibilidade de vários municípios para se editarem outras obras de Camilo, o que é outro sinal bem positivo. A melhor homenagem que podemos fazer a um escritor, quando comemoramos os 200 anos, é lê-lo.
Como professor e investigador de Camilo tenho a convicção íntima de que essa é uma das funções mais nobres: dar Camilo a ler. Sinto que muitos leitores podem ter vontade de ler Camilo pela primeira vez e assim se tornarem cidadãos que passam a conhecer melhor a sua língua, o seu país e a sua cultura. Não conhecer e admirar Camilo é ter uma bagagem cultural e literária muito reduzida. É como ser inglês e não conhecer Shakespeare; ser espanhol sem ter lido Cervantes; ser francês e ignorar Balzac.


Era expectável o fim da vida de Camilo?

Camilo teve uma vida muito intensa e com momentos particularmente dramáticos. Para quem lê a obra com atenção, ele fala de si amiúde, até do tema suicídio em vários momentos. Quer na escrita dos romances, quer nas cartas, queixava-se muito dos problemas de saúde. O suicídio parece ser uma tragédia adivinhada. Aumentarem os problemas de saúde e sentir perder a visão... Depois de muitas tentativas frustradas para resolver o problema, recebe um prestigiado oftalmologista em Seide. O médico desenganou-o. Mal o médico descia as escadas, Camilo pegava no revólver e suicidava-se.

Do que conhece de Camilo ainda consegue ganhar espanto?

Sempre! Mesmo quando releio uma obra já conhecida. Um grande escritor tem esse poder de surpresa, sobretudo para um leitor atento. Nunca é igual ou previsível. Diante da genialidade sentimo-nos tocados. Sinto surpresa e admiração a vários níveis - o uso ímpar da língua, a notável força de imaginação no ato de contar histórias, o poder de criar cenários e atmosferas, enfim, a poderosa capacidade de representar Portugal, que tão bem conhecia, num vastíssimo e vivo arquivo documental. Em Camilo, Portugal pode ver-se ao espelho, mesmo o Portugal de hoje. E isso é admirável, seja num grande romance, seja em pequenas narrativas (contos), que são verdadeiras obras-primas em qualquer país. Enfim, há sempre um Camilo que nos surpreende, que nos deixa seduzidos. Afinal, um grande escritor nunca perde o brilho. Italo Calvino dizia, justamente, que os grandes clássicos são aqueles escritores que nunca deixam de nos espantar.