A escritora Luísa Costa Gomes (Lisboa, 1954) acaba de ganhar o Grande Prémio de Literatura DST, na sua 30.ª edição, com o livro “Visitar Amigos e outros contos”. Nesta edição estiveram a concurso mais de 200 candidaturas. O júri do prémio – composto por José Manuel Mendes, Lídia Jorge e Carlos Mendes de Sousa – escolheu a obra da autora por unanimidade, sublinhando que “os contos da autora surpreendem pela energia narrativa, revelando personagens poderosas na sua diversidade sociológica e afectiva com uma recusa da inércia existencial e uma construção formal que enriquece a experiência de leitura”. Formada em Filosofi a, tem uma obra extensa no campo da ficção (contos, romances), do teatro e da ópera, mas também em outros domínios – da crónica à pintura. Tem sido distinguida com vários prémios e forma de reconhecimento. E este seu último livro, constituído por 13 contos, foi considerado pela crítica o melhor livro de 2024. Hoje às 21h00, no Teatro Circo de Braga, decorre a cerimónia de entrega do Grande Prémio de Literatura dst à autora premiada, Luísa Costa Gomes. Aproveitamos a ocasião festiva para uma conversa com a escritora.
Acaba de publicar mais um livro de contos – Visitar Amigos e outros contos (D. Quixote, 2024), considerado o “melhor livro do ano” pelo Expresso / Público, sendo agora distinguida com o Grande Prémio de Literatura dst. Como explica essa sua fidelidade ao género do conto? O que significa receber mais este prémio na sua carreira?
A fidelidade só se consegue “explicar”, partindo do princípio de que se trata de uma relação saudável, quando há prazer e dedicação. Mas olhe que não é assim tão fiel a fidelidade, escrevo até mais teatro e romance do que conto. E quanto a prémios, este não é mais um prémio. Este livro não recebeu nenhum outro prémio. O dst Literatura é o único e, por isso, ainda mais acarinhado.
Estes treze contos reunidos em Visitar Amigos, com a sua diversidade de histórias e situações narradas no passado e no presente, revelam algumas preferências temáticas da sua escrita. Pode comentar algumas dessas tendências?
Parece-me que a diversidade é que é de regra, por ir abrindo os horizontes temáticos, as diferentes abordagens, os diversos tratamentos do tempo histórico, mas sim, são contos que se centram em experiências, na importância da duração, continuando o que tinha feito na colecção anterior, Afastar-se. Relacionando-o com o livro anterior, que tinha como fio condutor a ideia do primado da experiência e a sua irredutibilidade ao chamado “sentido da vida”, com alguns contos centrados na temática dos absurdos da paixão amorosa, Visitar Amigos amplia esse primado à vivência sempre singular da História e do tempo. A tendência fundamental é talvez a pôr em causa o adquirido, analisar o que aparece como evidente, tratar o permanente como ilusório…
Neste livro de contos como em outros livros seus, os leitores e a crítica confrontam-se com várias formas de ironia mais ou menos ácida e de humor em geral. Que lugar ocupam estes registos na sua escrita em geral e na sua visão do mundo?
Penso que o humor, ácido ou não, é constituinte da maneira literária de cada um. Não se pode extirpar o humor do texto do humor do autor do texto, é o seu olhar, a sua “maneira”. Rir com A Queda de um Anjo não é o mesmo do que rir com o Quincas Borba ou com A Montanha Mágica. Estranhou a última? Os leitores não se lembram do humor do Thomas Mann e, no entanto, o livro tem partes hilariantes. Tem a ver também com as expectativas… Se a pessoa vai com vontade de se aborrecer, até os palhaços do circo lhe dão tédio. O humor não é de tirar e pôr, nem me é necessário, não é um extra que acontece depois, para aligeirar a coisa. Quero crer que sou humorista, embora pouca gente me dê esse crédito. Estou como aquela personagem do Machado de Assis, que escrevia umas polkas maravilhosas e populares, e que insistia em querer escrever valsas, porque a valsa é que era nobre. No meu caso é talvez o contrário: querem forçar-me à dignidade do sério. A minha maneira, para o bem e para o mal, é a da irrisão de (mais ou menos) tudo ou mesmo tudo.
Tem formação em Filosofia e foi professora nesta área. Alguém pergunta na sua escrita sobre o papel pedagógico da História: “Mas ele acredita na profilaxia pela História? Pensa que não voltarão a fazê-lo?” A resposta não se faz esperar: “Sim, talvez, mas não da mesma maneira. Voltarão a fazê-lo, estes, outros, sacrificando outros, ou mais destes”. Em tempos mais inclinados para a distopia, o que podemos aprender com a História? Se é que podemos aprender alguma coisa com o passado, interrogam-se alguns.
Não há resposta para esta questão, pelo menos uma resposta credível. Vamos procurar à História as lições que nos convêm, a filosofia da História é tão histórica e epocal como a própria História. Vivemos num tempo em que isto é absolutamente visível, com a nova crítica da história colonial e patriarcal e à importância fundamental que é dada à escravatura na criação do capitalismo moderno. Neste conto, dado que a protagonista é paleontóloga e o interlocutor historiador da História humana, o sentido do histórico é eminentemente diferente, as suas escalas, as suas interpretações. A visão paleontológica, a reflexão sobre o Antropoceno, são formas diferentes de entender o tempo, em que o humano tem um papel bastante modesto.
Independentemente de aprendermos com a História, podemos evocar o passado, construir narrativas em tempos pretéritos, como acontece em alguns dos seus contos, regressando aos tempos de 1974-75. Que significa para si essa evocação? Homenagem, balanço crítico, simples prazer de evocar?
Uma linguagem eufórica, uma disrupção, uma época de turbilhões apaixonados. No Menino Prodígio temos esse estudante serôdio, sempre tangencial ao olho do furacão, preso pela Pide sem ter nenhuma convicção revolucionária, e que depois, no entanto, faz uma vida inteira de serviço ao outro como médico de província. Nestes contos há algo das “Vidas”, de Plutarco, e também das “Vidas de Homens não Ilustres” do Pontiggia e do Rosebud do “Citizen Kane”. Vidas, o que se faz, o que nos acontece, e a maneira de lidar com tudo isso. E como contá-las sem lhes fazer grossa injustiça.
Perante tantas situações críticas e extremas do mundo contemporâneo, das guerras e das perturbações políticas e sociais, perante sucessivas ameaças à própria democracia, ainda há lugar para a esperança? A ansiedade e o medo em que tantos cidadãos vivem hoje obrigam-nos a repensar o mundo que queremos?
Não sei. Quanto à esperança, é como a felicidade de que se falava no Mahabaratta. Ela é inevitável. O cérebro não aguenta a realidade como ela é. Cria futuros róseos, cria céus, cria libertações, cria paliativos. Dá explicações desculpativas. Isenta-nos de responsabilidade. Desde que saibamos que tudo isso é criação nossa, não faz mal nenhum, a esperança, antes pelo contrário. Penso que é sempre melhor repensar o mundo na alegria e no prazer, estar a repensá-lo a partir do medo é capaz de criar mais angústia ainda. Não me perguntem como é que se faz, isso é tarefa para a gente nova.
Os poderes cada vez mais dominantes do sistema capitalista e dos avanços da tecnologia (incluindo a inteligência artificial) podem moldar novas facetas do ser humano no futuro imediato? Como vê a presença da inteligência artificial na vida quotidiana e mesmo no mundo da criatividade e da cultura?
Não sei. Primeiro ponto: não parece possível no momento regular essas aventesmas. Os Estados Unidos estão a querer pelo menos dez anos sem regulamentação para poderem manobrar o mercado, a Europa é lorpa e não tem autonomia. Todos desistimos de tudo. Não se consegue controlar o fluxo do mal, pela simples razão de que é prático e todos ganham qualquer coisa. O diabo é prático. O Chat GPT é imparável, só será parado por uma maquineta com mais funcionalidades, mais rápida, que dê ainda menos trabalho. O ser humano é prático. O que é prático e não dá trabalho, é bom. Entretanto, nós somos cada vez mais como os telemóveis. Estamos rapidamente a transformar-nos em androides, com corpo de androide e cabeça de androide, mas muito mais estúpidos do que robôs. Às vezes penso que Deus é uma máquina. Não é ex machina, é a máquina. Fazemos o que os telemóveis nos dizem para fazermos: atende, liga, desliga, tira selfie, posta, reposta, diz uma inanidade, ouve outros centos de inanidades e assim a vida vai passando. O que fazer? Nada, fazer como toda a gente, dizer “que horror” e continuar na mesma. Dizer “ah, e as crianças?”, e passar-lhe o telemóvel para a mão. Para ver um vídeo. Portanto, não tenho grandes opiniões, só observo o que se passa. As pessoas não têm já paciência para as outras pessoas. Estão isoladas na personalização dos respectivos feeds. Fazer o contrário, resistir, ler, criar, ter ideias complexas, tudo isso tem um cheirinho a fundamentalismo.
Ao longo da sua obra multifacetada, publicou romances, contos (também dirigiu uma revista de contos, Ficções), crónicas, muitas peças de teatro, libretos de ópera. E ainda tem tempo e criatividade para se dedicar à pintura. Como explica esta atividade diversa?
Não tenho explicação possível, para além do imenso prazer que me dá. Acho mesmo impossível de explicar. É a minha profissão. Com a agravante de não querer fazer mais nada, talvez se chame uma vocação. Não sei se ainda se percebe o que é uma vocação? Tem a ver com chamamento, uma imagética um bocadinho religiosa com que não me identifico. Tenho dois sentimentos contraditórios que sempre me dominaram: o primeiro, o do meu privilégio em poder fazer o que faço, privilégio interno, que pode desaparecer a qualquer momento. A tal inspiração, que pode eclipsar-se por um mau encontro na vida ou por qualquer catástrofe que nos aconteça. O outro diz-me que escrevo desde os dez anos de idade, publico desde os trinta, livro atrás de livro, chama-se uma profissão. Ou seja, em relação à escrita e à pintura tenho uma dupla atitude técnico-romântica.
Estamos a celebrar grandes efemérides do Nascimento de Luís de Camões e de Camilo Castelo Branco. O que significam estes autores na sua escrita? Que atualidade mantém eles hoje?
Camilo é o mentor da minha introdução nas Letras, o meu primeiro romance chamado O Pequeno Mundo começou por ser uma paródia do mundo e linguagem camilianos. Com Camões nunca me encontrei, com ressalva para umas passagens d’Os Lusíadas incluídas na ópera Corvo Branco, até este ano, em que escrevi um libreto, com o título Relicário Perpétuo, a propósito dos 500 anos do seu nascimento. A ópera terá música de Luís Tinoco e encenação de Nuno Carinhas, foi encomenda da Biblioteca Nacional e do Teatro Nacional de São Carlos.
Numa permanente sociedade do espetáculo, dominada por múltiplas urgências, redes sociais, formas desenfreadas de narcisismo, proliferam o ruído, a desinformação, a solidão, comportamentos psicóticos. A escrita sua literária é sensível a temas como estes e de que forma os pensa?
Os Olhos Verdes já abordavam esse universo do ruído, é um romance do princípio dos anos 90, quando se deu a abertura dos primeiros canais privados em Portugal. Pouco mudou, agravou-se bastante, dentro do modelo esperado. Mas aquilo que eu trato no romance, uma história em que os dois protagonistas nunca chegam a encontrar-se e que é inspirado nas sagas islandesas, é a morte da interioridade. É o paradigma comportamentalista, a ideia de que aquilo que conta é o que se vê, o que se age, o que se mostra. O interior dos personagens, inventado primeiramente pelo romance naturalista do século XIX com o seu narrador omnisciente desaparece para dar lugar à exterioridade enigmática do que se faz. É reduzir a literatura ao que se pode ver. Por isso tinha um pequeno ensaio no meio do romance, sobre George Berkeley, o filósofo do “ser é ser percebido”, e o seu universo solipsista. A imagem produz solidão, porque no que dá, tira. Dá um ersatz, um ícone, um simulacro, tira a presença, o ser sensível, a verdade.
Para muitos, na hecatombe das “grandes narrativas”, a religião também entrou em crise no mundo contemporâneo. Qual a sua visão e a relação pessoal com a religião?
Sou apóstata e em geral contra todas as igrejas, sejam partidos políticos ou seitas apocalípticas. Dito isto, naturalmente tenho algum parentesco com os místicos e os anacoretas, mas com o privilégio de um bom wifi. A Vida de Ramón, um romance escrito nos idos de noventa, reinventa a vida desse místico maiorquino e da sua luta contra Deus, que o queria fazer dominicano. Mas ele fez-se franciscano, embora não completamente, e nunca seguro de nada do que fazia. O místico, se não se lhe mete na cabeça andar a pregar a vida boa, é inofensivo, vive na sua cabeça, é deixá- -lo estar.
Um momento marcante na minha vida adulta teve a ver com a revelação de que Francisco de Assis, herói e modelo da minha infância, era afinal esquizofrénico. Ouvia vozes, despia-se em público, tinha uma competição maníaca com os outros pela humildade e a humilhação. Há um momento das Fioretti em que ele exige que os outros o espezinhem, lhe espezinhem a cabeça. O filme do Rossellini é, aliás, exemplar na descrição da “divina loucura” dos franciscanos, comum a Llull, que se auto-intitulava “louco de Deus”. Foll deu fool que é bôbo. Bôbo de Deus é um bom epíteto para qualquer um.
Num mundo de violência e com crescentes sintomas de distopia, dominado por várias formas de descrença, talvez possamos, provocatoriamente, repetir e parafrasear a velha pergunta de uma personagem de Dostoievski – a Beleza, a Arte, a Literatura podem salvar-nos? Por outras palavras, qual o lugar ou poder da Literatura hoje?
A Literatura e a Arte têm o poder, como sempre tiveram, que cada um lhes der. Há, houve, haverá gente sensível a um gesto humano singular, a uma visão do mundo característica, idiossincrática, radicalmente pessoal. Não falo de multidões de leitores, nunca houve multidões de leitores. Se não houver, como é o caso dos Estados Desunidos no presente, uma deliberada destruição de universidades, bibliotecas, bolsas de investigação e de tudo o que pareça criação inovadora, penso que a Literatura fará o seu caminho, de boca a orelha, sempre mudando, provavelmente sempre mantendo a sua própria “maneira” de olhar através do que a linguagem pode fazer quando bem manobrada. A época não é favorável. Os mídia espalham o ódio, é o seu ganha-pão. As redes sociais vivem da publicidade, vendem eyeballs, isso só se consegue com mentira e indignação. Houve engenharia social – as gentes são muito facilmente engenheiráveis, muito mais facilmente do que se imagina – e os últimos trinta, quarenta anos produziram uma mudança de paradigma, do corporativo ao económico- -corporativo e daí ao financeiro-corporativo, e do capitalismo popular ao neoliberalismo descabelado. Trump e os seus são o rosto visível do que se conseguiu fazer social e culturalmente ao longo deste tempo. Apologia da ignorância e da irracionalidade, celebrização da política.
Nos próprios Estados Unidos, pelo que vejo de shows e podcasters, continua-se a discussão sobre “estaremos a deslizar para o autoritarismo?”, e mesmo com o ICE na rua a arrebanhar, neste ponto, três mil pessoas por dia (!!!), os vemos sentados a discutir “a saúde da democracia”. Felizmente, milhões já perceberam que não há democracia nenhuma e que o ditador é mesmo um ditador daqueles que eles imaginavam existir só na América do Sul (normalmente, aliás, apoiados pela democracia americana). Mas não vale a pena chorar sobre leite derramado. É organizar a resistência e saber que, pelo menos aqui em Portugal, estaremos algum tempo em minoria. E que ainda tem de piorar antes de melhorar. Lamento não ter melhores notícias para dar, não é por acaso que tenho fama de pessimista.