
Djaimilia Pereira de Almeida é escritora premiada e colaboradora de publicações como o jornal digital Observador, e tem desenvolvido diversas atividades nas áreas académica e cultural. A sua vasta produção literária iniciou-se com o romance Esse cabelo (2015), sendo a obra mais recente intitulada O livro da doença (2024).
Augusto Soares da Silva é Professor Catedrático de Linguística na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FFCS) da UCP-Braga, e um estudioso da variação da língua portuguesa no âmbito dos países da CPLP, com destaque para o Brasil. Ambos participam hoje, às 15h00, no Auditório Isidro Alves da Católica Braga, numa sessão comemorativa do Dia Mundial da Língua Portuguesa. Antecipamos essa intervenção com estas entrevistas conduzidas por Maria José Ferreira Lopes, coordenadora do Curso de Estudos Portugueses da FFCS.
Entrevista a Djaimilia Pereira de Almeida
O seu percurso universitário iniciou-se com uma licenciatura em Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa. O que a levou a essa opção e que importância tem um curso centrado na língua portuguesa para os jovens de hoje?
Quando escolhi a minha licenciatura tinha em vista sobretudo o estudo da literatura, mais do que da língua portuguesa. Interessava-me ler mais e ler um pouco de tudo. Penso que foi uma decisão muito sapiente para uma rapariga de dezoito anos interessada em ser escritora e continuo a acreditar que a literatura é a melhor porta de entrada para qualquer língua.
Além da língua portuguesa, o seu percurso académico é marcado pela literatura, pois concluiu um doutoramento em Teoria da Literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. De que forma esta escolha se relaciona com a sua carreira literária?
Estudar teoria literária foi uma forma de prosseguir o interesse por ler mais e ler autores de todo o mundo, sem restrições linguísticas. Interessava-me, além disso, entender como funcionam os textos, o que querem dizer, como escrever sobre eles — interessava-me aprender a ler. Aos vinte e dois anos, tinha uma enorme curiosidade por aprender e saber mais, que o programa de estudos pós- -graduados no qual ingressei me ajudou a satisfazer. Tenho hoje a certeza de que dificilmente me teria tornado escritora se não fossem os mais de dez anos que passei na universidade. Tornei-me escritora com o que aprendi e contra o que aprendi.
Um dos temas fundamentais da sua já volumosa e premiada produção literária é a identidade africana, em particular a angolana. Qual lhe parece ser o papel da língua portuguesa nessa problemática?
Parece-me um pouco limitador olhar assim para o meu trabalho: escrevo sobre pessoas e não tenho grande interesse em identidades nacionais. A língua interessa-me porque é nela que se expressam as minhas personagens e através dela que articulam a sua sensibilidade e o seu interior.
Mia Couto por diversas vezes tem falado de “militância pela diversidade” no referente ao cultivo da língua portuguesa. O que pensa dessa perspetiva e qual o papel dos escritores da CPLP nesse âmbito?
Não tenho presente a afirmação de Mia Couto, porém acredito que existe lugar, no universo da língua portuguesa, para todas as suas formas, cambiantes, pronúncias, sotaques e extravagâncias. Acredito que quanto mais são e mais variadas, mais rica é a literatura escrita na língua que falamos todos — e maior o tamanho do mundo que somos capazes de conceber enquanto comunidade através da linguagem.
As estatísticas apontam para uma expansão do uso da língua portuguesa, mas verifica-se ainda, ao nível de instituições como as Nações Unidas, uma secundarização da nossa língua perante outras como, por exemplo, o russo. O que acha que se pode fazer para valorizar internacionalmente uma língua tão global como o português?
É muito provável que essa seja uma questão de ordem sobretudo política e uma valorização difícil de levar a cabo sem que outros factores sejam tidos em conta. Certamente que a secundarização da lingua portuguesa não se prende com a sua riqueza falada e escrita. Talvez sem novos equilíbrios de natureza política no teatro das nações as coisas não possam ser de outro modo.
Nos últimos anos tem aumentado em Portugal o número de imigrantes oriundos da CPLP, com destaque para o Brasil. De que forma estas circunstâncias poderão influir no português europeu?
Da forma mais benéfica possível: enriquecendo a língua que falamos, tornando-a mais ágil, flexível, divertida, mais plástica.
Entrevista a Augusto Soares da Silva
Grande parte da sua atividade como investigador tem sido dedicada ao estudo da variação e mudança da nossa língua, nomeadamente comparando o português europeu com o brasileiro. O que é que distingue fundamentalmente essas duas variedades nacionais da língua portuguesa?
Existem várias diferenças entre o português europeu (PE) e o português brasileiro (PB) em todos os domínios da língua. É interessante notar que há tendências evolutivas inovadoras e conservadoras nas duas variedades, pelo que nem a tradição é característica do PE nem a inovação é privilégio do PB. Por exemplo, o PB é mais conservador do que o PE na fonética e fonologia e na colocação dos pronomes pessoais átonos (chamados clíticos): houve mudanças importantes no PE, a partir do séc. XVIII, no sistema vocálico átono, no sentido de um acentuado fechamento, e na passagem dos clíticos para a posição enclítica, a seguir ao verbo. As duas variedades nacionais começaram a divergir a partir do séc. XIX, ao mesmo tempo que o PB estandardizava traços linguísticos próprios. Existem diferenças significativas na fonologia, na morfologia, na sintaxe, no léxico e na pragmática. Os estudos que tenho desenvolvido no âmbito do projeto CONDIV (Convergência e Divergência entre Variedades Nacionais do Português), financiado pela FCT, confirmam, letometricamente, uma clara divergência entre PE e PB nos últimos 70 anos quer no léxico quer na gramática.
Tem aumentado em Portugal o número de imigrantes oriundos da CPLP, com destaque para o Brasil. Braga é apontada como um caso especial pela percentagem muito elevada de brasileiros que se têm fixado na cidade. De que forma estas circunstâncias estão a influir no português europeu e que efeitos prevê a médio e longo prazo?
Efetivamente, o PB goza em Portugal de grande exposição, o que contrasta com a exposição mínima do PE no Brasil. Num artigo que publiquei recentemente (“Portuguese, pluricentricity and Brazilian Portuguese: A case of a reverted asymmetry?”), procurei mostrar que a “assimetria invertida”, isto é, maior influência do PB sobre o PE, é mais cultural do que linguística. Esta assimetria é evidente no impacto da cultura brasileira em Portugal desde meados do século XX e hoje reforçada, patente nos produtos audiovisuais brasileiros (telenovelas e música), no sucesso do futebol, da comida (pão de queijo, açaí, tapioca), da imprensa e dos conteúdos da internet (vídeos YouTube, streaming, influenciadores digitais, jogos digitais, memes). Outro indicador é o enorme aumento de imigrantes brasileiros em Portugal nos últimos anos, o que tem conduzido a atitudes alarmistas em relação ao PB, considerando-o como um distúrbio no desenvolvimento linguístico das crianças portuguesas. Mas esta assimetria não se reflete, com o mesmo grau, a nível da língua. É óbvio que existe influência do PB sobre o PE. Ao contrário do que muitos vaticinaram, o impacto linguístico das famosas telenovelas brasileiras não foi elevado. E a influência atual pela internet e nas escolas portuguesas deixa naturalmente marcas lexicais e gramaticais, mas serão efémeras e esse impacto será pouco significativo.
Qual é o estado atual da língua portuguesa nos PALOP? A propósito da expressão de Mia Couto “militância pela diversidade”, de que forma tem estado a evoluir o português falado nos PALOP e como pode a Linguística mais normativa enquadrar essas mudanças?
Devemos distinguir duas situações: países onde o português não é língua materna (Cabo Verde e Guiné-Bissau, com os seus crioulos) e países onde o português tem tido um crescente número de falantes como língua materna ou segunda (Angola, Moçambique e S. Tomé e Príncipe). Nestes três países, existem variedades nacionais emergentes, isto é, português angolano, moçambicano e são-tomense. A massificação do ensino, a mobilidade social e o prestígio do PE como língua de ascensão social têm favorecido a nativização destas variedades africanas, com traços fonológicos, morfossintáticos e lexicais próprios. Nalguns casos, verifica-se o estádio subsequente de estabilização endonormativa. É o caso do português moçambicano, com o projeto em curso do Dicionário do Português Moçambicano. Os traços característicos das variedades africanas resultam ora de processos de contacto com as línguas bantu ora de mudanças do próprio PE motivadas pelas respetivas ecologias linguísticas. As projeções demográficas e demolinguísticas apontam para um aumento exponencial da população e de falantes do português ao longo da segunda metade deste século, principalmente em Angola e Moçambique.
Nos últimos tempos têm surgido novas designações para caracterizar o português, tais como Língua Pluricêntrica, Língua Global e Língua Internacional. Qual o significado dessas expressões?
O português é uma língua pluricêntrica no sentido de que possui diversas normas padrão, tipicamente nacionais: duas variedades nacionais bem estabelecidas (PE e PB) e variedades nacionais emergentes mais ou menos nativizadas (português moçambicano, angolano e são-tomense). O português é ainda hoje mais bicêntrico do que pluricêntrico, dada a hegemonia dos centros europeu e brasileiro. É também uma língua internacional, na medida em que é língua nacional ou oficial de oito países, a que se juntam a Guiné Equatorial e a Região Administrativa de Macau. Dada a enorme expansão transcontinental, o português é também língua global. Mas ainda não existe – e será pouco provável que exista nos próximos tempos – uma norma supranacional comum como português internacional ou global.
Neste momento, a nossa língua é falada por mais de 300 milhões de pessoas, mas o seu peso internacional ainda é reduzido. O que se deve fazer para reforçar a importância da língua portuguesa?
É importante e urgente desenvolver políticas de língua que promovam a estandardização pluricêntrica do português. Para isso é necessário: elaborar instrumentos normativos pluricêntricos, principalmente dicionários e gramáticas; promover a estandardização informal das variedades emergentes através da televisão, jornais e internet, à semelhança do que a TV Globo tem feito para o PB; construir uma política de gestão multilateral dos diferentes padrões nacionais, no âmbito da CPLP e com a colaboração do Instituto Camões, do Instituto Guimarães Rosa e de outras instituições; e desenvolver práticas educacionais e materiais didáticos para o ensino do português como língua pluricêntrica. Esta estandardização pluricêntrica poderá servir de base para uma norma panlusófona, especialmente útil para a internacionalização do português.